Dedo de Deus Paulista
RELATO DO MEU AMIGO JULIO FIORI
Certa manhã um rapaz forte vestindo bombachas e botas de gaúcho em Pedro de Toledo, cidadezinha encravada no sertão paulista entre Miracatu e Peruíbe, finalmente decidiu-se a subir numa pedra que viu elevando-se da mata, teimosamente desafiando o horizonte. Antes do asfalto as informações chegavam a Pedro de Toledo pelos trilhos de bitola estreita da maria fumaça, quando vinham! Nada sabia de alpinismo nem de esporte, era apenas o açougueiro do lugar, mas nas veias sentia aquela coceira pelo desconhecido, explorador nato movido pela curiosidade dos aventureiros. Orésio Ramalho era este sujeito e encravado no meio da Serra dos Itatins (narizes de pedra) o Dedo de Deus Paulista foi a esfinge que o desafiou a desvendar seus segredos.
Outros tempos, outros métodos e garimpei a pedra no Youtube onde um canal de Tv documenta com pompa a expedição de um punhado de monitores ambientais guiados até o cume pelo falecido Vitor Negrete em comemoração aos 52 anos da conquista, em julho de 1953, pelo próprio Orésio na companhia dos irmãos Rodolpho e Roberto Pettená. A apresentadora alegava a necessidade da presença do ilustre alpinista em função das dificuldades intrínsecas da escalada técnica.
Assim também pensou um grupo de jovens aventureiros paulistas quando em 1950 descobriram uma montanha ainda virgem na Serra dos Itatins e partiram para o ataque no balanço do trem até Pedro de Toledo onde encontraram o açougueiro Orésio que algum tempo antes havia feito sua primeira tentativa.
– Tô dizendo que acima das letras “O.R”, cristão nenhum passa…
Mas a sentença negativa não desanimou os rapazes que levavam consigo um escalador espanhol lapidado nos Alpes e nos Pirineus com o mais avançado equipamento de alpinismo para a época. Orésio os levou de caminhão por 9 quilômetros até o alto da Serra da Amoreira e depois por mais 8 quilômetros pela picada que terminava no Rio do Espraiado onde residia um caiçara que os acolheria por uma noite e os guiaria no dia seguinte até a base da pedra.
– Vão lá e acabem com a lenda do Dedo de Deus. Boa sorte! – gritou Orésio na despedida.
Naquela mesma noite perderiam seu maior trunfo afugentado pelas grandes e peludas aranhas caranguejeiras que invadiam o barraco por todas as frestas.
– Si, acá todo es grande! La selva es grande, las arañas son grandes, las víboras son grandes y los mosquitos son muchos! – berrava o espanhol – Yo no voy más adelante! Basta! Vuelvo a San Paulo mañana! No quiero saber más! Me invitaran a hacer alpinismo y no a romper selvas virgens com víboras y mosquitos y fiebres! Eso no es alpinismo, no para mi!
Que se f*da o espanhol e avançaram um dia inteiro pelo mato pra dormir numa gruta feito bicho e no dia seguinte enfrentaram a fera. Escalaram por entre pedras, fendas e chaminés, agarrando-se em raízes e touceiras de capim navalha até o chão despencar vertical por 100 metros. Na verdade escalavam uma gigantesca laca afastada 10 metros da montanha por imenso abismo que o ângulo de aproximação não permitia identificar. No galho mirrado de um arbusto viram a inscrição “O.R” gravada a talho de canivete.
Algum tempo depois um dos membros do grupo, que não estava presente na escalada, sobrevoou a montanha gravando todo o seu contorno em 16mm para só então desvendar o infortúnio da expedição e visualizar a via de escalada correta. Em seguida outra expedição partiu para o Dedo de Deus, mas foi impedida por chuvas torrenciais que se prolongaram por dias a fio e no retorno comunicaram o achado para o açougueiro. Meses se passaram até que receberam um telegrama:
– Eu e amigo Rodolfo Petená escalamos pela fenda – pt – Atingimos Pico Dedo de Deus – pt – Abraços.
A história é narrada 25 anos após os fatos por Hamilton de Souza, membro da primeira expedição, no livro “Itatins, a montanha proibida” impresso pelas Edições Paulinas. E assim acabou-se o mito da última montanha virgem.
Será que li a palavra proibida? Numa época em que as virgens deixaram de existir a muito tempo, “proibida” já é bem excitante. Um decreto de 1958 instituiu a reserva estadual de Itatins, depois em 1986 criou-se a Estação Ecológica da Juréia-Itatins (EEJI) e finalmente em 2013 outra lei ordinária expandiu a área para 84.379,33 ha onde até respirar é proibido sem autorizações e carimbos do Instituto Florestal.
Iniciei minha pesquisa pelo Jorge Soto que anos antes subiu o Morro Boa Vista onde ainda existem algumas ruínas e uma torre erguida pela Cotesp e expandi à Vivian (Vivi Mar) Matos que em 2015 participou de outra expedição que do Morro Boa Vista avançou pela crista sudeste até a base da Pedra, mas o contato mais valioso veio na pessoa do Jean Rodrigues Dias que recentemente, em solitário, refez quase todo este trajeto.
Informações não faltaram do veterano Arlindo Toso que em 1967 partiu do Rio do Espraiado, avançando pela face oeste, contornando o Morro Boa Vista e escalando o Dedo de Deus na companhia de ninguém menos que Orésio Ramalho. Escalaram debaixo de chuva grossa equipados apenas com botas cardadas sem uso de cordas. O mestre Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin também andou por lá alguns meses depois quando manteve contato com Rodolpho Pettená.
Garantiram-nos que faríamos cume com uma mão nas costas, mas como confiar em informações tão antigas? Vegetação e pedras se desprendem com o passar do tempo. O Google mostra um imenso desmoronamento recente que não aparece em outras fotos da web. O vídeo no Youtube já tem 11 anos de idade e passa pouca informação a respeito do que realmente interessa. Como encontrar a base da via correta e evitar a face com a imensa laca separada da montanha pelo precipício de 100 metros que barrou as primeiras expedições?
Garimpando uma migalha aqui e outra ali, comparando fotos de diferentes épocas e ângulos, lendo relatos e cartas topográficas lentamente montamos o quebra cabeças e na véspera do dia dos pais, 12 de agosto de 2016, as 19:00 horas estava já no trevo do Atuba, as margens da BR 116, de mochila nas costas esperando o Alisson Wozniak, o Juliano Santos e o Natan Lima passarem de automóvel para começar a brincadeira.
Depois de muitas horas, asfalto e postos de pedágio chegamos ao Bairro de Santa Rita, pouco afastado de Miracatu, onde encontramos o Jorge Soto recém chegado de São Paulo e finalmente conhecemos pessoalmente o Jean. Com equipe completa tratamos logo de improvisar um bivaque na sala de estar do novo companheiro e descansar para o dia seguinte. As 7:00h já estávamos sacolejando dentro da kombi em direção a Pedro de Toledo onde estacionamos em Três Barras para fazer o desjejum. Lugarzinho difícil de entender; café no boteco da esquina, pão, queijo e presunto na padaria, sanduíche só na lanchonete que abriria bem mais tarde. Deu trabalho convencer a atendente da padaria para cortar o pão e distribuir a mistura dentro. Comemos na calçada junto com os vira-latas.
Mais sacolejo pela esburacada Estrada do Espraiado até o alto da Serra do Bananal e adiante. No Bairro do Espraiado os pequenos sítios são distantes uns dos outros e estacionamos no pátio de Dna. Vera, conterrânea da república de Curitiba, perdida naquele sertão. Recepcionou os patrícios com gosto pela novidade e aconselhou:
– Se alguém perguntar digam que são meus aparentados de Curitiba que estão hospedados aqui e passeando pelas redondezas.
Com este salvo conduto tratamos de zarpar a pé por mais um quilômetro e meio pelo descidão até encostar no Rio do Espraiado e cruzar pela decrépita ponte pênsil. Todo cuidado é pouco nestas horas e lá se foi um terço dela para dentro do rio com enorme estardalhaço. Só o Natan, que ficou pendurado nos cabos de aço, não achou graça na situação. Neguinho pulou feito cabrito assustado!
Sobre o talude a direita se desenvolve um muro e atrás dele uma antiga escola a muito abandonada, mas não totalmente arruinada. No interior tomado pela umidade ainda se encontram carteiras escolares, mesas e cadeiras semi-destruídas pelo tempo. Alguma alma bondosa ou saudosista passou a roçadeira pelo pátio e do silêncio quase se pode ouvir as professoras recitando o be-a-bá e a algazarra das crianças no recreio. Depois da falência do projeto nuclear de Iguape 4 e 5, a burra política ambientalista decretou que toda a margem esquerda do rio seria intangível sem avaliar as particularidades de cada área. Uma escola a menos, distante não mais que cem metros da estrada, num país de analfabetos funcionais, lembrando Chernobyl sem nem precisar do vazamento radioativo.
Atrás da escola começa a enfadonha subida ao Morro Boa Vista por uma estrada de serviço igualmente abandonada e retomada pela vegetação que cresce sobre alguns poucos centímetros de detritos que se acumularam em cima do piso de concreto. Suave nos seus infinitos zig-zags que lentamente sobem a montanha contornando suas encostas, expondo barrancos laterais, velhas tubulações e postes tombados. Tivemos sorte de subi-la pela face oeste enquanto o sol fritava a face oposta, mas não escapamos do calor escaldante e quatro horas mais tarde chegamos aos 1.100 metros suando as bicas.
A estrada nivela e termina numa série de platôs de concreto formando consecutivos pátios interligados por degraus e protegido com guarda-corpos. Tudo dominado por um bosque fantasmagórico de finas hastes de bambu regularmente espaçadas e piso forrado por espessa camada de folhas secas implorando por um incêndio. No primeiro pátio existe um amplo e limpo abrigo com teto metálico em arco, perfeitamente habitável além de enferrujadas carcaças no entorno. No segundo se ergue uma torre metálica com quatro apoios e excelente plataforma intermediária já acima das árvores que permite visão panorâmica em três quadrantes. Só a vista para o Dedo de Deus é obstruída pela enorme massa rochosa do cume duplo do Boa Vista. Outras plataformas se sucedem com ruínas de casas e galpões nos mais variados estágios de degradação. Lugar assustador e perfeito para encontrar a Bruxa de Blair rondando a noite no meio do bambuzal.
Trata-se na realidade de uma antiga estação de retransmissão erguida pela Companhia de Telecomunicações do Estado de São Paulo (COTESP) e abandonada em 1977 com a chegada da inovadora tecnologia dos satélites estacionários. Coisa que o Ciririca bem conhece.
Subimos o barranco para o primeiro cume todo coberto pela vegetação e no segundo abriu-se uma janela para o Dedo de Deus.
– É longe pra cacete! – foi o pensamento coletivo.
Muito abaixo de nossos pés se iniciava uma crista bem demarcada na direção sudeste até outra montanha mais baixa, continuando até a base da “Pedra” e seguindo além. Tudo coberto pela floresta exuberante com exceção da montanha proibida que se projeta altiva para o céu contra a vastidão da planície litorânea. É o objetivo pessoal, e descemos pela face sul fresca e gotejante, atolados na prazerosa umidade do terreno, desviando precipícios, dependurados em cipós, deslizando pela encosta até o início da crista. Bosque alto com árvores frondosas e forrado com vegetação rasteira, cipós unha-de-gato, taquarinhas e criciúmas que colam como velkron, arrancando a pele na passagem. Seguíamos por trilhas de animais e sobre montes de estrume das antas na crista extremamente seca e sufocante. Se não bastasse o ardor do suor salgado escorrendo sobre os cortes e escoriações, não demoramos a sentir o corpo coçar pela andança dos minúsculos e inevitáveis micuins.
Às quatro e meia da tarde já havíamos vencido o primeiro trecho de crista e contornávamos a montanha central quando desviamos para a face sul, descendo por uma vala natural de drenagem que acumulava pequenas e fétidas poças de água antes de restabelecer a rota sudeste na continuidade da crista. Notei que o relevo se dobrava a esquerda e seguíamos em paralelo a vala de drenagem mergulhada na grota. Chegamos uma hora depois ao fundo de um selado seco, fresco e espaçoso, protegido do vento por todos os lados e apesar da inevitável controvérsia foi ali que decidimos acampar.
Dividimos as tarefas. O Natan com o Juliano iniciaram os preparativos para o pernoite fixando as redes e montando a cozinha, o Alisson com o Jean seguiram em frente pra explorar a crista que seguia diretamente para a base da Pedra, eu e o Jorge Soto descemos em busca de água que julgávamos distar não mais que 50 ou 100 metros horizontais em nível 10 ou 15 metros abaixo. Na mosca! Encontramos o riacho correndo ligeiro por entre as pedras com água cristalina e gelada onde imediatamente matamos a sede e coletamos uns 25 litros, suficientes para um pernoite confortável e o ataque ao cume na manhã seguinte.
O despertador corneteia às seis e meia, mas levantar é outra novela. A marcha se inicia subindo até a crista onde existe uma pequena clareira plana, ideal para barracas, mas excessivamente exposta aos ventos. Não demora a surgir um mirante com vista direta para o pilar de pedra já próximo. É a primeira vez que o vemos depois da janela no Boa Vista e as dúvidas terminam quando identificamos o diedro que o Vitor Negrete escalava no vídeo de 2005. Duas lombadas à frente o terreno se inclina de verdade na direção do pico e alcançamos a base da pedra na entrada de uma pequena canaleta depois de cruzar por moitas gigantes de capim navalha.
A canaleta leva diretamente para uma espremida gruta que termina abrupta no vazio, cercada de paredes verticais por todos os lados. O Natan e o Juliano se entretém estudando e discutindo as possibilidades de ascensão. Para não ficar na ociosidade resolvo explorar outra rota por fora da gruta e contornando pela direita encontro um trepa pedra sujo que se contorce numa curva fechada a esquerda, passando sobre o teto da caverninha e me conduz sem dificuldade ao início do tão esperado diedro. De imediato visualizamos um velho “P” cravado na rocha e o Natan inicia a guiada instalando um Camalot nº 3 para aumentar a proteção, depois costurou com outros. Ao todo usou de 0,5 a 3 e esticou 25 metros de corda até um frágil platô de terra onde ancorou a parada num pino bem esquisito e enferrujado, mas suficientemente seguro.
Segui na cola numa diagonal à direita em aderência até a base do diedro com alguma dificuldade para contornar uma solitária moita de capim que depois se mostrou bem confortável para apoiar o joelho esquerdo, e alcançar uma trinca contínua na junção da parede com o diedro que permite subir com esforço em oposição até alcançar o ponto de se lançar a direita cavalgando o ângulo exposto do diedro em direção ao platô de mato. Inicialmente avaliei o crux como 3º grau bem exposto, mas vale a percepção de quem guiou classificando-a como 4º Sup. A corda vindo de cima deixa tudo mais fácil.
O platô começou a ficar pequeno demais com a chegada do Juliano e resolvi explorar um pouco a frente para estabelecer a rota até o cume. Alguns passos a direita submergi num mar de capim navalha até a altura do pescoço. Voltei rapidinho pedindo que trouxessem as botas e as polainas nas mochilas se não quisessem sair fatiados do outro lado, mas então percebi um lance de parede limpa acima da cabeça do Natan que seguia por mais uns 5 ou 6 metros verticais antes de encontrar o capim. Muito exposto, mas dotado de excelentes agarras e dei sorte ao encontrar moitas de capim bem menores e “não tão afiadas” fazendo a bordadura de uma matinha com arbustos duros e retorcidos. Nadando de braçada sobre a quiçaça avancei para cima e para o norte até uma pedreira na borda do abismo e a velha placa de bronze. Cume!
Lá embaixo o Jean já havia subido e agora lutavam pra convencer o Jorge Soto a calçar as sapatilhas. Ao som das corneteadas do Natan subiu o agonizante Jorge equipado com os sapatos do palhaço Bozo. Nem bateu o meio dia e todos se confraternizavam no cume com vista desimpedida para a serraria ao redor. Mar e céu se fundiam num horizonte acinzentado e só a linha sinuosa das brancas ondas quebrando na praia marcavam as fronteiras entre o líquido e o sólido.
O vento não tolera a existência daquele solitário pilar de pedra desafiando os elementos e sua cabeleira de capim navalha dança continuamente de um lado para o outro. Tristeza era ver o distante Boa Vista no horizonte e saber que em minutos estaríamos marchando sobre aquela interminável crista, alimentando um exército de carrapatos famintos. Descer de rapel foi bem rápido e também não demorou para empacotar as tralhas botando as pernas para funcionar morro acima. Cada um levando seus três ou quatro litros de água para evitar a sede atroz sentida na vinda.
Novamente a secura do ar e o calor sufocante nos maltrata e nas poucas paradas perdemos até a pose de machões, uns catando os carrapatos dos outros. Oito ou dez por perna. Filas de micuins nas camisetas esperando sua vez de subir para as dobras da barriga. As cinco batemos o ponto debaixo da antena e o Jean, sem lanterna, picou a mula estrada abaixo para descer rapidinho aproveitando a luz do dia. As seis ficou tudo preto e acabou a pressa. Sentados num tronco passamos o chapéu para recolher cada gota d’água que ainda existisse no fundo das pets para reunir pouco mais de meio litro e fazer um suquinho de pacote e dar o último gole.
Jorge Soto fechando a fila sempre entretido em conversa animada com seu amigo invisível. Uma hora interminável de estradinha enfadonha ainda nos separava da escolinha e depois um subidão dos infernos até encostar os traseiros na kombi, mas o que dizer da proibida?
– PRØIBIDA é marca de cerveja, caros amigos!