Travessia dos Capivaris
RELATO DO AMIGO JÚLIO CESAR FIORI
Travessia dos Capivaris
Nunca subestimar uma montanha é a lição poucas vezes assimilada, apesar das decorrentes catástrofes. A previsão do tempo era péssima para aquele fim de semana com a entrada de uma frente fria vinda do Sul. Excelente oportunidade para ficar em casa no abrigo e conforto do lar, mas o CUME preferiu levar seus associados para conhecer esta outra faceta muito frequente da Serra do Mar, particularmente cruel e inóspita.
A escolha do cenário recaiu sobre os Capivaris que apesar da altitude, aproximadamente 1620m nos maiores e 1550 no Mirim, não apresentam obstáculos técnicos além da grande exposição aos ventos congelantes devido a rarefeita cobertura vegetal. Alertados que nesta jornada os anoraks seriam de fundamental importância, 10 pessoas compareceram ao ponto de encontro pouco antes do amanhecer de sábado 12/03/2022. Ângela Nogueira e Leandro (Bolívia) Pereira da Silva retornariam do alto do Capivari Grande enquanto Adelino R. dos Santos, Júlio Cesar Fiori, Luiza Kielt Rocha, Marcelo Correia, Marcelo Lucas Aguiar, Maycon Hoffmann, Natan F.L. Lima e Vera Lúcia de Oliveira completariam a jornada somente na base do Mirim.
A subida do Capivari Grande aconteceu como esperado, sem nenhum visual, garoa fria e moderada com rajadas ocasionais de chuva e vento. Muito barro da entrada na mata até o cume onde nos despedimos dos sortudos que retornariam e iniciamos a travessia adentrando no profundo vale que separa as montanhas. Não levamos mapas, bússola, GPS ou qualquer outro meio de orientação para compensar a total ausência de visual, mas a idéia era esta mesmo, queríamos dúvidas, discussões e consensos forçando os iniciados a se manifestarem tomando decisões em meio ao ambiente e clima hostis.
A trilha pouco sinalizada desce do cume e nivela sobre uma crista que avança diretamente para Oeste até subitamente dobrar para o Sul despencando 300 metros pelo leito escalonado de uma descida d’água. Encontrar o ponto exato para sair do riacho foi o primeiro obstáculo a gerar confusão e a dupla Marcelo “Lukão” e Marcelo Correia assumiram a responsabilidade de liderar o grupo farejando rastros e fitas esparsas em meio ao trançado de taquaras que numa única estação ocupa todo e qualquer espaço livre abaixo das árvores gotejantes. Raríssimas vezes não encontraram a solução por seus próprios esforços e ultrapassado as imensas poças de lama no fundo do selado iniciamos uma lenta e obstinada subida em meio a muita lama, escadas de raízes e muitos túneis de bambus que nos obrigaram a avançar curvados, por vezes de quatro. Pensei até em retornar ao estágio evolutivo de quadrúpede.
Mesmo com nosso objetivo a Oeste os rastros invariavelmente nos conduziam para o Sul por uma rampa interminável e a falta de referência visual me causava certa inquietação e ansiedade. Não foram poucas as vezes que bateu aquele arrependimento por ter negligenciado o estudo prévio deste relevo antes de ingressar na travessia, mas a autocensura pouco ajuda em meio a roubada.
Gradualmente a vegetação foi mudando, o solo drenado e a aparição das grandes bromélias terrícolas anunciavam a proximidade de algum cume intermediário e subitamente os rastros fizeram uma curva fechada para Oeste adentrando por uma matinha nebular (floresta ombrófila mista alto-montana) com seus troncos esparsos, retorcidos e recobertos por musgos. O terreno nivelando tornava inequívoco que pisávamos sobre uma crista muito acima dos 1000 metros de altitude, 1580m para ser exato e finalmente na direção correta. Uma luminosidade difusa invade a penumbra e trombamos com um grande matacão isolado rasgando o teto das arvores.
“No meio do caminho tinha uma pedra – Tinha uma pedra no meio do caminho”.
A sua volta o bosque ficava livre da vegetação rasteira e o solo coberto por folhas úmidas e mortas permitia a locomoção sem nenhuma restrição. Mais adiante apenas uma barreira intrincada de taquaras sem marcas de alguma passagem anterior. Os rastros sumiram totalmente e adotamos o procedimento padrão dos círculos concêntricos. O grupo principal estaciona para descanso e alimentação, aproveitando a oportunidade para vestir roupas quentes e secas porque a temperatura despencava rapidamente, enquanto batedores descreviam círculos cada vez mais espaçados a procura de algum rastro ou fita.
O Marcelo “Lukão” até que tinha uma bússola de aparência pouco confiável e o Marcelo Correia vinha demarcando todo o trajeto no celular, mas com a noite se aproximando e a temperatura despencando, abrir mato no peito não era uma opção aceitável. Depois de horas de procura o chão estava todo pisado e repisado, aumentando a confusão e as 18h00 decidimos por retornar. Sabíamos estar muito próximos, sentíamos o cheiro do Capivari Médio logo a frente, mas qual direção nos levaria a “frente”? O lugar até que convidava para um bivaque, mas não tínhamos equipamento, água, comida e muito menos roupas secas de abrigo. O retorno foi extremamente penoso debaixo da chuva gelada, mas o movimento aquece o corpo e a certeza do itinerário já conhecido aquece a alma diminuindo a frustração momentânea pelo objetivo não alcançado.
Retornei com extrema atenção ao entorno imediato na procura de algum mocó onde se pudesse passar uma noite de cachorro caso acontecesse o pior. Qualquer ataque de câimbras ou uma leve torção em algum dos oito pares de pernas poderia nos obrigar a enfrentar um pernoite na mata, mas o grupo permaneceu alegre, firme e coeso em meio a lama pegajosa, escorregões, bundadas e tombos cinematográficos até o fundo do selado. Ultrapassado o mar de lama ficamos cara a cara com o bicho papão. Começaria a estafante subida do Capivari Grande com as pernas já cansadas, as roupas encharcadas e os corpos semicongelados.
Hora de uma pausa para reforçar o moral e os estômagos. Escolhido um local razoavelmente plano na vertente da encosta, debaixo de um grosso tronco que crescia na horizontal antes de subir para o céu. Tudo gotejando pesadamente sobre nossas cabeças e o fogareiro imediatamente começou a chiar, copos foram providenciados cortando pela metade as embalagens PET já vazias e a sopa quentíssima foi servida em duas rodadas estimulantes. Apenas segurar a sopa quente por entre os dedos gelados já produzia um prazer indescritível, descendo garganta abaixo então, sem comentários!
Começa a subida verticalizada com as pernas empurrando e os braços puxando qualquer apoio que as mãos pudessem agarrar na semiescuridão das lanternas, algumas já dando sinais de esgotamento e outras totalmente mortas até o encontro com o riacho quando a corrente d’água veio aumentar os infortúnios ao mesmo tempo que anunciava a proximidade do cume. Um curto trecho pouco desnivelado no alto da crista e recebemos na cara uma amostra do vento Sul que nos castigaria na encosta oposta. Ultrapassado o cume ainda restava um curto trecho florestado nos protegendo do vento, mas que ficou comprido em razão do desgaste acumulado.
Adentrando o campo não tinha salvação alguma. A fortíssima ventania varria os campos desprovidos de obstáculos e a chuva congelante nos castigaram com crueldade desmedida. O campo de visão estava limitado ao estreito facho das lanternas restantes e o percurso visível não ultrapassava alguns poucos metros. As torres de comunicação ficaram visíveis apenas depois de esbarrarmos fisicamente nelas e a estradinha nos deu a certeza de dormirmos em casa. Ficamos aliviados ao encontrar a caminhonete do Adelino que subia para nos resgatar.
A entrega se saiu melhor que a encomenda e o grupo se comportou maravilhosamente bem diante de todas as adversidades, principalmente dominando a mente e as dúvidas frente a frustação de não alcançar o objetivo, abortando a travessia quando já se encaminhava para o seu final e encarando com bom humor um penoso retorno.
… o retorno
Parabéns pelo relato Fiori…
E parabéns para essa galera do CUME
Estive lá na primeira fase da empreitada e ratifico este maravilhoso relato foi tudo muito bem reproduzido com riqueza de detalhes, enfim uma aventura muito rica em aprendizado para todos. Parabéns C.U.M.E.