Fenda Y – Marumbi

Fenda Y – Marumbi

28 de maio de 2022 6 Por Natan

Escalando a Fenda Y na Esfinge

Hoje nada nos parece impossível. Já pisamos na Lua e temos robôs perambulando em Marte. Um turista desavisado na Estação Marumbi, pode ao toque de um “botão”, falar com alguém no outro lado do planeta e com o mesmo dispositivo portátil, ampliar a imagem dos imensos paredões de granito que se erguem a sua frente. Mas imagine sua surpresa ao ver pequenos pontos escuros e reconhecer pessoas em movimento na parede vertical.

 

A Esfinge do Marumbi ergue-se diretamente da planície litorânea, lisa e vertical. Da Estação é parcialmente encoberta pelo Abrolhos, mas sua face granítica expõe 3 marcantes cicatrizes. São chaminés no jargão da escalada ou simplesmente, da esquerda para a direita, as Fendas 1, 2 e Y. Os nomes são autoexplicativos.

 

Se da Estação a visão destas fendas impressionam, da primeira janela na Trilha Noroeste são assustadoras. No passado quando apenas caminhava sonhando em também escalar, sempre me detinha fascinado diante destas linhas marcantes, privativas de um pequeno e seleto grupo de escaladores. Ouvia com atenção as histórias de superação, esforço físico e exposição insana naqueles paredões com um misto de medo e desejo.

 

“Decifra-me ou te devoro” elas repetiam para mim e nosso enfrentamento era já inevitável.

 

Meu interesse só aumentava com o passar dos anos apesar das respostas desestimulantes; “Ninguém faz mais, já era difícil antes, agora com as poucas proteções podres, ficou inviável …”, mas a coceira nas mãos começou a ficar insuportável depois que o Irivan Burda, Fábio Machado e Ermínio Gianatti regrampearam a Fenda 1 em julho de 2017 e os mesmos Irivan e Fábio reforçados pelo Marcelo (Bonga) Santos repetiram a dose em julho de 2019 na Fenda 2. Neste mesmo mês entrei com o Nelson da Silva para fazer a Fenda 1 e no mês seguinte com a Carolina (Carol) Cherpinski e o Guido Dezordi para escalar a Fenda 2.

 

Restava a Y para finalizar a trilogia clássica e com o Irivan ficando responsável pelo serviço de regrampear as fendas na Esfinge, com autorização dos conquistadores, não tardei em me oferecer para auxiliar no serviço e cobrei insistentemente até que na comemoração pela conquista do Mosquetão de Ouro 2022 finalmente marcamos a data.

 

Sexta feira, 27/05/2022, a noite na “Casa do Vita” finalmente, aos poucos, caia a ficha daquilo que tinha me proposto a fazer. Junto com os camaradas Adriano (Cruel) José Safiano e Juliano Pereira dos Santos com reforço de última hora do Marcelo (Capitão) Correia e Rafael (Índio) Ozelame ouvíamos atentamente as instruções do Irivan; “Seis pessoas é muita gente, vamos dividir em 2 trios; o primeiro faz a regrampeação e o segundo trio ajuda a carregar o peso e vem escalando a via já regrampeada para ver como ficou”.

 

A coisa caminhava bem até que a segunda parte azedou para o meu lado; “O primeiro trio vai com o Natan puxando a guiada, eu vou de segundo colocando as chapas e o terceiro vem puxando uma parte da carga”. Muita calma nesta hora, será que entendi corretamente?  “Tá Irivan, então eu vou guiando do jeito que a via está mesmo, no original e com os grampos podres e … te dou segue de cima?”. Recebendo apenas aquele simples “Sim” como resposta fui dormir sem mais perguntas e um só pensamento; “agora tomei bonito no toba!”.

Manhã de sábado gelada e as 6h30 já estávamos carregados feito mulas caminhando em direção a base da fenda Y. As mochilas continham cordas de 9,4mm x 60 metros com alma, proteções móveis para qualquer imprevisto, cadeirinhas e sapatilhas, freios e ascensores, furadeiras elétricas a bateria, brocas de aço endurecido, parabolts e chapeletas de aço inoxidável, roupas leves, transpirantes e térmicas, etc, etc.

 

Tudo testado e certificado pela UIAA e o coração ainda insistia em querer saltar pela boca, mas então me veio ao pensamento outro sábado, numa outra época, 26 de fevereiro de 1954, quando desta mesma casa partiram o Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin e o Werner (Tarzan) Wiemers equipados apenas com grossas cordas de sisal com 25 metros e botinas ferradas, marretas e talhadeiras simples, pinos secos de ferro com olhetes soldados no fundo do quintal e roupas grosseiras e pesadas para desafiar o impossível.

 

“…a atmosfera tornou-se incerta; chuva, garoa, noite estrelada. Iniciou-se a escalada propriamente dita à custa da iluminação de um lampião de carbureto em estado precário e vela estearina. Devagarzinho, fomos nos aproximando do Parque dos Bois”. Vitamina.

 

Em pouco tempo estávamos todos equipados no meio do mato tentando achar onde realmente começava a fenda, pois para cima via apenas uma aderência toda suja seguida por um capão de mato. A orientação do Irivan sempre simples e direta; “é só tocar na parede pegando a esquerda, passar o trepa mato que vc vai entrar na linha da chaminé”.

Segui na ponta da corda, patinando na parede suja e depois de varar mato encontrei o início da chaminé. Tocando para cima foram aparecendo lances fáceis e progredindo rapidamente, alcancei um platô bastante confortável. A informação de baixo era que ainda restavam 10 metros de corda confirmando que havia encontrado o lugar da primeira parada. O dia prometia diversão de primeira grandeza. Enquanto eu e o Irivan escalávamos o mais leve possível para melhor executarmos nossas tarefas coube ao Capitão transportar o grosso da carga.

 

Na segunda enfiada encontrei uma chaminé curta e vertical, que passamos sem muito esforço, para terminar noutro amplo platô povoado por boas árvores, mas o Irivan sinalizou para continuar subindo até a base de outra chaminé, muito maior onde instalaria a P2. Na posição em que me encontrava não tinha nenhum contato visual com o segundo trio, mas ouvia seus resmungos e as vezes até conseguia entender a conversa. Saber que estavam vivos e em movimento me tranquilizava.

 

A chaminé da terceira enfiada é totalmente vertical e vai se afunilando até um pedregulho entalado sem nenhuma proteção possível e apenas embaixo desta pedra haveria alguma chance de instalar uma peça móvel. O Camalot nº4 serviu como luva, exatamente como previra olhando lá de baixo, mas havia já esticado uns bons 20 metros quando a coisa azedou. A fresta apertada dificultava ainda mais a movimentação e o trecho ficou tenso, mas vencidas as dificuldades apareceu outro longo trecho de escalada encimado com um velho pino no topo da chaminé.

 

Os irmãos Orisel (Vespa) e Osíres (Arame) Curial descreveram a conquista deste mesmo trecho em fevereiro de 1950; “…galgamos uma chaminé de 4 metros e fomos detidos 15 metros acima por outra chaminé, com uma grande rocha encravada nela. Colocamos um grampo com olhete e um pino seco. Realizamos um bom avanço, passando a cunha. Subimos 8 metros de chaminé, acima da qual cravamos um pino para descida.” Arame.

 

Escalar até o pino apodrecido não foi problemático, mas escapar da chaminé para ganhar o mato sem nenhuma proteção foi outra história. Finalmente consegui proteger com 2 peças móveis e equalizar a P3 numa árvore já fora da chaminé. De cima ouvia a furadeira gemendo dentro da fenda enquanto outro reclamava da dificuldade em passar pela pedra entalada.

 

Com o trio reunido partimos para a transversal em direção ao Parque dos Bois, onde fica o ângulo da Fenda Y. Comemos e nos hidratamos antes de entrar nas 2 últimas enfiadas que segundo testemunho do Irivan; a primeira é a mais bonita e a segunda a mais difícil. Confesso que até aquele momento tudo vinha melhor que a encomenda. Estava já um pouco ralado, mas ainda em boa forma e com o moral elevadíssimo.

 

Só em setembro de 1950 o Arnoldo Sobanski, Vitamina e Arame conseguiram alcançar o Parque dos Bois. Sobre a escalada de 1954 o Vita deixa seu testemunho; “…na passagem da Porta do Inferno, fomos obrigados a diversas vezes baldear a carga da mochila maior, por ser impossível fazê-la passar pela chaminé estreita. Na Claraboia do Inferno ficamos completamente as escuras. Mesmo assim prosseguimos. Finalmente atingimos o Parque. Procuramos abrigo numa chaminé sem nome e nada encontramos para nossa proteção. Resolvemos dormir ao ar livre, sob a chuva mesmo, mas prosseguimos pela Quinta Avenida e atingimos a laje junto a Porta do Sol. Sob a mesma nos abrigamos e pernoitamos meio protegidos da chuva e do vento, após rápida refeição sem beber para economizar a água. Dormimos”.

 

Guiei a quarta enfiada com segue do Irivan, avançando por entre velhos e carcomidos pinos cravados na parede suja da chaminé. Não encontrei nenhum problema em subir apoiado naquelas proteções instaladas 68 anos antes por meu grande amigo e tutor. Na realidade estava felicíssimo e cheio de orgulho pela honra de ser o último a escalar a Fenda Y em seu estado original, exatamente como a deixaram Henrique (Vitamina) Paulo Schmidlin e Werner (Tarzan) Wiemers no dia da conquista.

 

Realmente foi a enfiada mais bonita até então e sem nenhuma proteção fixa fui ganhando cada bloco de pedra entalada. Nem cogitei proteger com peças móveis diante da situação em que uma queda de apenas poucos metros me esmagaria na chaminé ou ficaria todo quebrado no choque contra qualquer das pedras entaladas abaixo.  Mas o último lance abaixo do platô se mostrou demasiadamente arriscado. A chaminé alarga e as pernas abrem em tesoura, sem chance de fazer pressão com os braços para evitar a queda. Só restou confiar 100% na aderência da sapatilha e ganhar altura.

 

Via acima da cabeça um bloco de pedra que me dava esperança de encontrar apoio, mas suas bordas inclinadas para fora me obrigavam a subir sempre mais. Míseros centímetros suando frio antes de poder abraçar o bloco. Uma equalização num grampo antigo mais algumas proteções móveis evitaram que os camaradas experimentassem do veneno.

 

 

Com a furadeira gemendo e gritando mais abaixo comecei a estudar a próxima enfiada, a mais difícil segundo o Irivan. A via segue a linha da esquerda do Y por um off width apertado, vertical e com alguns bambuzinhos se sobressaindo até um solitário pino batido bem no alto. Off width é um trecho de chaminé muito apertada em que muitas vezes se fica com metade do corpo para fora.

 

Pouco adiantava olhar ou estudar e apenas aumentaria a ansiedade. Melhor enfrentar o inevitável sem muito pensar. Entrei concentrado na idéia de escapar dali o mais rápido possível e só pensava em chegar naquele velho pino torcendo por sua integridade. Segui ganhando altura centímetro a centímetro com os braços dobrados em “asa de galinha” na fresta apertada, com os braços retaliados pelos cristais de quartzo.

 

Perdi a noção do tempo dentro do off width, mas fiquei imensamente feliz e aliviado quando me vi fora dele. Faltava pouco agora, mais alguns bons grampos e outros nem tanto para tudo acabar num bambuzal. Muita satisfação em terminar esta escalada. Quanto tempo sonhei com este momento, foi indescritível, mas não chegara ainda o momento de comemorar. Entre arbustos e taquaras precisava equalizar uma parada provisória para a segurança dos camaradas abaixo. Batidas mais algumas chapas e o Irivan estava instalando a P5 ao meu lado.

 

Em 1954, o Vitamina é econômico na descrição das dificuldades; “…ao amanhecer prosseguimos normalmente sem parada até a base do Y onde descansamos por alguns minutos. Batizamos a fenda seguinte de Chaminé Curial em homenagem aos irmãos precursores nesta técnica em paredes. Seguindo, vencemos a Chaminé Curial e logo mais atingimos o ponto máximo dos trabalhos de grampeamento em lances abertos. Após exaustivos trabalhos sob intenso sol e sede, instalamos o total de quatro grampos. Na verdade, foram cinco furos, porém um deles rachou e não pudemos aproveitar o trabalho. Finalmente após um lance decisivo, numa pequena fenda, onde se cravou um grampo de olhete, atingimos a zona de vegetação. Estava vencido o grande desafio, a Parede Norte fora transposta”.

 

Mas subir é só metade do objetivo e enquanto o Capitão ainda suava dentro da chaminé, o Irivan se embrenhava no taquaral a procura da via Última Terra de Marlboro que nos proporcionaria um rapel mais rápido e seguro. Estávamos todos esgotados com o Capitão sofrendo em demasia no off width e achamos mais prudente o baixar direto para a P4 enquanto o Cruel com o segundo trio já baixava da P4 para o Parque dos Bois.

 

O dia fora perfeito, o visual fantástico e a via espetacular. Para fechar com chave de ouro bastava agora todos descerem em segurança. O Irivan se juntou a mim na P5 com o sol já tocando o horizonte e abriu o primeiro rapel por dentro da fenda. Despenquei em seguida rezando para a corda não enroscar em nada quando a puxasse da P4, obstáculos perfeitos para enrosco é o que não faltava. A corda deslizava rápida até que do nada estancou e logo acima do off width. Tentei desengatar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. O Irivan já rapelava abaixo da P4 com a corda deixada pelo segundo trio e sozinho na P4 via o tempo e a luz se extinguindo rapidamente.

 

Algumas coisas precisam ser feitas e outras não devem nunca ser feitas sob qualquer pretexto. Soltando a auto, saí da parada e escalei solando até entrar no off width, contrariando o bom senso fiz o que não se deve nem se pode fazer. Galgando mais alguns metros alcancei a ponta da corda pelo lado oposto. Fazendo força para não despencar e força para soltar a corda, fiquei entretido por um tempo precioso. Tudo inútil e como não há nada de ruim que não possa piorar, na ânsia de guiar a via o mais leve possível transferi tudo que não fosse necessário na subida para a mochila do Capitão, até a bendita lanterna.

 

Organizei a corda presa conforme recomendação do pessoal abaixo, desescalei até a P4 iniciando o rapel na semiescuridão. Descendo numa linha sem obstáculos estaria no platô 50 metros abaixo em poucos minutos, mas diante da possibilidade de engatar outro par de cordas preferi dividir por três o lance. Tudo muito rápido para não ficar na completa escuridão e mesmo assim precisei da ajuda das luzes dos camaradas abaixo nos últimos metros de descida.

 

Seis brutamontes ancorados numa mesma parada não é confortável e nem aconselhável, mas era o que tinha para o momento e somente mais três rapéis cheios estávamos todos seguros no chão firme com cordas e equipamentos. Dali para baixo seria rápido e já sentíamos o gosto da cerveja gelada e o cheiro do churrasco estralando sobre a grelha.

 

Passava das 8h00 quando retornamos a Vila Marumbi e resgatar a corda entalada é missão para outra ocasião, a desculpa perfeita para voltar a escalar esta via que nos proporcionou uma experiência ímpar, aprendizado intenso e imensa satisfação.

Na base da via se preparando para escalar

Primeiro Trio.
Marcelo, Irivan e Natan.

Inicio da escalada, tudo muito sujo. Sabe Deus quanto tempo alguém não passava por ali.

Marcelo Capitão e Adriano Cruel na P1

Irivan na regrampeação

Eu e o Capitão na P2

Cruel puxando a segunda enfiada.

Parada nova.

Juliano

Lance ruim da terceira enfiada.

Segundo trio. Rafael Índio, Juliano e Adriano Cruel.

Transversal da P3 para o Parque dos Bois

Eu e o Irivan no Parque dos Bois.

Natan na P4

Um olhar de dentro das fendas …

4° enfiada

Irivan instalando a proteção no inicio da 4 enfiada.

Melhorando a segurança dentro da chaminé

Cruel puxando a guiada …

Primeiro trio dentro da fenda. Cruel puxando a guiada logo em seguida.

Primeiro trio na P4.

Irivan preparando a P4

P4 na base do Y antes de receber as novas chapas

Capitão, grande parceiro de roubadas.

Natan no off width

Natan saindo do off width. De azul, Capitão na base do Y.

Mesmo no final e cansados, o negócio é não perder o bom humor…

Galera empoleirada na P2 da via Ultima Terra de Marlboro

Adriano Cruel, Rafael Índio, Marcelo Capitão, Natan, Juliano e Irivan.
Cerveja na mão esperando sair o churrasco merecido.

Parede Norte da Esfinge.