
Capivari–Graciosa: Uma Travessia Inédita pela Serra do Mar
A Travessia Capivari – Graciosa
O estado do Paraná abriga montanhas difíceis, travessias exigentes e um montanhismo de qualidade, marcado por décadas de história. O desejo de se desafiar é algo presente em muitos — às vezes, tudo o que precisamos é do momento certo e das pessoas certas para embarcar nessa ideia.
A travessia Capivari–Graciosa apresenta uma linha estética lógica e harmoniosa quando observada na carta topográfica. Ela inicia no Capivari Grande e segue por todo o pequeno maciço, passando pelo Quarto Capivari. Atravessa a serra do Ibitiraquiri pelos cumes do Ferraria e Taipabuçu, alcançando o Ciririca. Após cruzar a Garganta 235, termina no Marco 22, já na estrada da Graciosa.
Esse traçado, até então inédito em sua execução direta e contínua, foi o desafio que me propus a realizar na temporada de 2008 — mais precisamente entre os dias 23 e 29 de agosto daquele ano, com os companheiros Celso Macedo e Marcelo Brotto.
Preparativos e o começo da travessia
Tava chegando um feriado e quase todo mundo do Nas Nuvens Montanhismo ia estar fora. Eu tinha os dias livres, o plano pronto, mas nada de parceiro. Pensei no Celsinho, meu velho camarada da cidade de Morretes. montanhista experiente e muito gente boa.
“E aí, Celsinho, bora pra uma pernada daquelas, Pia?”
Ele já respondeu animado: “Qual que é?”
“Capivari–Graciosa, travessia inédita, topa?”
“Poxa, Natan, tô bem afim, mas preciso ver com o Marcelo Brotto. Tinha combinado algo com ele para esse feriado.”
No dia seguinte, o telefone tocou. Era o Celsinho confirmando: os dois estavam dentro!
De última hora, ainda entrou o Magrinho (Carlos Leal) do Nas Nuvens. E quem nos deu aquele apoio essencial na largada foi o Juliano Pereira e o Vinicius Ribeiro, que nos deixaram lá no Capivari Grande.
1° Dia – Neblina, peso e a caminhada lenta
Começamos com tempo feio: neblina densa e garoa chata. As mochilas? Um trambolho. Equipamento de pernoite e comida pra vários dias — andar rápido não era opção.
O primeiro cume foi o Capivari Grande, com seus 1.806 metros. Nem deu pra curtir o visual por causa do tempo. Quando estávamos prontos pra seguir, o Magrinho avisou que voltaria. Disse que não estava se sentindo bem. Tentamos animar o cara, mas não teve jeito. Seguiu o caminho de volta.
Seguimos nós três pro Capivari Médio, varando mato pesado. Nada de visual — a carta topográfica era nossa guia. O terreno entre os cumes do Capivari é bem acidentado e exige atenção na navegação.
Depois de muita dificuldade para atravessar o vale fechado subimos o máximo que pudemos antes de anoitecer. Ainda tínhamos água que trouxemos desde o inicio, mas já estava no fim.

Juliano, nossa carona até o Capivari Grande.
Para a caminhada, Marcelo Brotto, Natan, Magrinho e Celsinho.
2° Dia – Sede e água de bromélia
Acabou demorando um pouco a saída do acampamento improvisado com redes, mas logo estávamos atravessando aquela vegetação que mais parecia uma grande “teia de aranha verde.”
Ao final da tarde, paramos no vale entre o Médio e o Quarto Capivari. E aí pintou o perrengue: nada de água. Celsinho desceu o vale pra procurar alguma fonte, enquanto eu e o Brotto armávamos as redes. Voltou de mãos abanando. Brotto, com seu lado de engenheiro florestal, começou a buscar bromélias e conseguiu tirar água suficiente pras necessidades básicas. Mesmo filtrada com pano de prato, a água tinha gosto de terra e uns trocinhos boiando, mas misturado com suco, até que desceu bem.
3° Dia – Vale fundo, sede e tiros (sim, tiros!)
Acordamos cedo e em pouco tempo estávamos prontos pra continuar. Eu não lembro exatamente onde dormimos, só sei que foi antes da vegetação alta mudar pra um mato mais rasteiro.
Levamos cerca de 40 minutos até alcançar o cume do Quarto Capivari. O tempo estava muito melhor do que no dia anterior, e o humor também. Estávamos animados — só de ver o céu abrir já dava um gás extra. Pela frente, sabíamos que vinha um bom trecho de vara-mato.
Descemos a encosta do Capivari em direção ao Guaricana. À nossa frente, um vale gigante pra atravessar. Água ainda era uma pendência: estávamos mal hidratados, e varar mato daquele jeito só aumentava a sede.
No meio da barulheira de quebrar bambu e xingar o mato, alguém falou: “Escutaram isso?” Silêncio. Então, o som de água. Paramos e nos olhamos com um sorrisão no rosto. Seguindo a direção do barulho, achamos o início de um córrego com água cristalina e gelada — uma alegria difícil de explicar. Só quem já passou sede de verdade na montanha entende aquela felicidade.
Abastecemos as garrafas, bebemos até não aguentar mais, e seguimos descendo o vale. Já era meio da tarde quando cruzamos uma estradinha no fundo do vale, separando os Capivaris do Guaricana. Olhamos pra montanha à frente e ficou claro: se quiséssemos ir direto pro cume, precisaríamos de mais dias. Mudamos o plano. Pegamos à direita pra contornar o Guaricana e buscar o início da trilha da Conceição, de onde seguiríamos nossa linha pelos cumes.
A noite se aproximava quando chegamos perto das fazendas da região. Dava pra ver umas luzes lá embaixo. A orientação ali ficou tensa — plantações, pinos, estradinhas pra todo lado. Mas a carta indicava que estávamos perto da trilha da Conceição.
De repente, um estouro. Depois outro. E um barulho estranho nas árvores. Só no terceiro que nos caiu a ficha: tiros. E os estalos nos galhos acima? Eram projéteis passando por cima das nossas cabeças. Desligamos as lanternas e corremos até uma encosta que dava abrigo natural dos disparos.
Ficamos mais de meia hora agachados, ouvindo os tiros cruzarem o mato ao redor. Ninguém se mexeu. Eu, tão exausto, apoiei a cabeça na mochila e acabei dormindo ali mesmo. Só lembro do pensamento antes de apagar: “Só espero que esses bostas não venham com cachorro… se não, fudeu. Amanhã eu resolvo.”
4° Dia – Reviravolta e motivação
Acordamos meio zonzos e levamos alguns segundos pra entender onde estávamos. Todo mundo com aquela cara inchada e pouco animada. Seguimos em silêncio até o início da trilha da Conceição, agora com a preocupação real de não sermos alvejados no caminho. Em um momento, até sugeri sair pela Fazenda do Bruno (hoje Fazenda Rio das Pedras) e voltar pra casa. Mas foi o Celsinho quem animou o grupo e puxou o bonde pra frente.
Chegamos ao cruzo do rio, longe das fazendas, e resolvemos parar. Era hora de se reorganizar. Não tínhamos uma refeição decente desde o começo da caminhada. Primeiro foi a escassez de água, depois a noite tensa sem janta. Mas ali, com suco gelado, uma comida quente e um chocolatinho de sobremesa, o ânimo voltou — talvez fosse só isso que a gente precisava.
A trilha da Conceição lembra muito a do Itupava: calçamento antigo, cercado de flores, com um toque histórico. Cruzamos o rio que vem do Ferraria, e ali começou a subida. Eu só tinha descido por ali antes, nunca subido — e com mochila pesada, a coisa foi puxada.
O caminho segue pela margem do rio e depois sobe forte até sair nos campos que levam ao cume do Ferraria. Apesar do calor, o dia estava lindo, com direito a mar de nuvens e tudo. Paramos no cume pra lanchar e curtir o visual.
O começo da travessia até o Taipabuçu não foi fácil: muito vara-mato, pouca água, e o cansaço acumulado ainda pesava. Mas estar no cume do Ferraria, com tudo que já tínhamos passado pra chegar ali, renovou o espírito do grupo. Agora era só montanha pela frente — e isso deu um upgrade no humor geral.
A descida até que foi tranquila. No início dos anos 2000, o fundo do vale entre o Ferraria e o Taipabuçu era conhecido por ser complicado. Pegamos um bambuzal chatinho, mas em pouco tempo vencemos essa parte e já estávamos subindo o próximo cume.
No meio da subida, encontramos um ponto de água. Já era final de tarde e avaliamos bem: o próximo ponto seguro só seria no início do Caratuva. Com o corpo cansado e a cabeça mais ainda, decidimos montar acampamento ali mesmo.
A janta foi caprichada, e o clima era outro. Todo mundo animado com a travessia inédita que estávamos fazendo. Conheço o Celsinho há muitos anos — um cara que nunca vi ninguém reclamar de nada dele. Gente boa demais, domina o turismo de aventura em Morretes com sua agência Calango. Escalador e montanhista experiente, parceiro de confiança.
O Brotto também é das antigas, mas era a primeira vez que estávamos juntos na montanha. Engenheiro Florestal, montanhista com bagagem, sempre envolvido com o montanhismo organizado, especialmente pelo Clube Paranaense de Montanhismo.
Apesar dos perrengues, a parceria, o bom humor e a colaboração do trio estavam intactos.

Nos campos do Ferraria. Essa árvore com flores amarelas é o melhor ponto de referencia, próxima a ela, era o ponto que a trilha levava para o inicio do vale dentro da mata.
5° Dia – Reabastecimento e um visual perfeito.
O dia amanheceu bem mais bonito do que o anterior, e o ânimo aumentou ainda mais com a expectativa do reabastecimento. Pela manhã, desmontamos acampamento e seguimos num passo firme até o cume do Taipabuçu, com seus 1.648 metros. De lá, descemos pela trilha que acompanha a encosta do Taipa e do Caratuva até chegar à base de um rio — ponto estratégico onde havíamos escondido uma barrica com mantimentos.
Como essa travessia é longa e tem início exigente, com varação de mato e orientação complicada, optamos por deixar uma reserva no meio do caminho. A base do Caratuva foi perfeita pra isso: discreta, com água por perto e fácil de identificar. Dentro da barrica, só coisa boa — comida, guloseimas e roupas secas.
Refizemos as mochilas com roupas limpas e cheirosas, repusemos o estoque de energia com alimentos melhores e seguimos em frente. Passamos tranquilamente pelo Itapiroca, Serro Verde e Luar. Já não estávamos tão apressados — o dia estava tão bonito que dava vontade de ficar nos cumes curtindo a vista.
Nosso destino era a Última Chance do Ciririca — nome autoexplicativo: é o último ponto de água confiável antes de enfrentar a crista do Ciririca. Como estávamos com redes, a melhor opção era acampar por ali mesmo, ao lado da água e aproveitando o espaço generoso que o local oferece.
6° Dia – Ciririca, mata densa e nostalgia
Sexto dia de caminhada. Nessa altura, o corpo já sentia o peso da travessia — mas a cabeça entrava no modo automático: café, desmontar acampamento, mochila nas costas e pé na trilha. De cara, já vinha a famosa rampa do Ciririca. Subida direta, sem alívio, mas com o tempo firme e céu limpo, o visual do alto compensou cada gota de suor.
Do cume, sabíamos que a parte mais técnica do dia ainda estava por vir: a navegação até a Garganta 235. Nos anos 2000, essa era um dos trechos mais traiçoeiros da travessia entre o Ciririca e a Graciosa. Muitos grupos se perdiam ali, especialmente a partir do Colina Verde e os vales seguintes.
Descemos até o Colina Verde, que marca o fim do campo de altitude. Dali em diante, entramos na mata fechada — uma sequência de vales e rios que considero uma das regiões mais bonitas dessa travessia. O primeiro valezinho parecia até um cenário de fantasia, desses que a gente imagina habitado por gnomos.
À medida que íamos descendo, os vales ficavam maiores e os rios mais caudalosos. Seguimos o leito do Rio Forquilha, ora por dentro dele, ora pela margem, até que ele faz uma curva acentuada pra direita — ali era o ponto de saída. Tomamos a esquerda, subindo o vale até a garganta entre os morros Cotoxó e Tangará.
Essa subida foi daquelas de testar a paciência. Mata fechada, bambuzal, o rastro sumia várias vezes e navegação difícil. Várias paradas pra tirar visada, ajustar o rumo, repensar a rota… já estava meio de saco cheio daquele tipo de varação. Mas era isso: parte do jogo.
No fim da tarde, cobertos de barro, arranhões e cansaço, chegamos à Garganta 235. Mesmo moído, deitei na rede com o MP3 de pilha tocando Zé Ramalho e lembrei os cinco dias de caminhada até ali.
Olhando pra trás, era impossível não reconhecer o privilégio que estávamos vivendo. Uma travessia intensa, conectando os grandes maciços da serra, por um caminho lógico e original — num tempo em que essas trilhas ainda eram rastros ruins ou nada de trilhas, diferentes de hoje, em 2025, onde quase tudo já tem trilha e traçado no GPS.
Celsinho e Brotto foram parceiros à altura. O tempo colaborou com visuais incríveis, e novamente a montanha proporcionando uma experiência única que não esquecemos mesmo com o passar dos anos.
7° Dia – Mãe Catira e o brinde final
Último dia da travessia. O corpo já estava cansado, mas o pensamento de estar perto do fim dava aquela energia extra. Seguimos pelo vale do rio Mãe Catira, num trecho demorado e técnico. A cada troca de margem, era preciso atenção redobrada: pedras escorregadias e trechos de água sumindo sob a mata exigiam cuidado.
A orientação aqui era simples — bastava seguir o fluxo do rio, que por vezes desaparecia sob o solo e logo reaparecia mais adiante. O passo era firme, quase automático. Talvez fosse a vontade de finalizar logo, talvez só o corpo no modo travessia.
A passagem pelo Dique Diabásio é referência. Bonito e simbólico: é ali que o rio começa a dar sinais de que a caminhada por dentro dele está chegando ao fim. Pouco depois, a Cachoeira Mãe Catira apareceu com um visual incrível. Paramos ali um instante, todos com um sorriso no rosto. A sensação de “estamos chegando” era clara.
Depois da cachoeira, seguimos mais alguns metros pela margem do rio até encontrar a trilha que sobe pela direita. Passamos pelos últimos vales e pequenos córregos que alimentam o Mãe Catira, e então veio a última subida. Aos poucos, o som dos carros na Estrada da Graciosa começou a surgir.
Por volta das 14h30, alcançamos o Marco 22. Sujos, fedidos, exaustos — mas contentes com a pernada. Travessia Capivari–Marco 22 concluída com sucesso.
Subimos mais um pouco pela estrada até o Recanto Engenheiro Lacerda. E lá, com uma cerveja gelada na mão, brindamos a jornada, a parceria e o feito.
Valeu demais, Celsinho e Brotto!
Parabéns pelo belo relato e memorável empreitada, meu Irmão Natan! Um fraternal abraço do Norte do Paraná!
Obrigado meu amigo Farina. Daqui a pouco sai nossa travessia juntos ai no Norte do Paraná.
Um forte abraço!
Até nos dias atuais tem relatos recentes de grupos perdido entre a garganta 235 e o colina verde. Fico imaginando na época aquela região deveria ser muito intangível. Belo relato de uma travessia insana 👍🏻