Via Leonel Terray – Pedra Bonita – RJ
RELATO ESCRITO PELO AMIGO JULIO FIORI
O calor era tanto que substituía sonhos por alucinações com dois anões aparecendo à porta onde jogam uma larga aliança antes de saírem em disparada pelo corredor. Ao abrir os olhos vejo na contraluz apenas a silhueta de uma figura careca adornada por duas orelhas de abano sentada no parapeito da janela no 14º andar daquele quarto de hotel. Me tranquilizo quando vi brilhar a brasa do cigarro e a baforada de fumaça fugir para a rua. Faltavam ainda alguns minutos para as seis da matina e a temperatura já beirava os 25 graus centígrados.
– Acorda piazada! – Insiste o Tio Willian – Em meia hora estará liberado o café.
O objetivo do dia seria a via Lionel Terray na face da Pedra Bonita voltada para a carranca da Gávea, mas, diga-se de passagem, que minha esperança até o último minuto se concentrava na Verruga do Frade em meio a serra de Teresópolis. Tanto isto é verdade que um terço da mochila estava ocupado com isolante térmico, saco-de-dormir e anorake, e só fui ler o croqui da via meia hora antes de cair desmaiado na cama.
– É uma via clássica de escalada tradicional que termina no cume.
Garantia o Juliano visivelmente motivado com a via aberta em 1965 por Salomith Fernandes e Raimundo Minchetti que a batizaram com o nome do ilustre conquistador do Annapurna que anos antes aportara na terra dos Tamoios presenteando-os com alguns pítons que também os ensinou a usar.
De barriga cheia e banho matinal tomado já suávamos as bicas antes mesmo do Uber encostar no meio-fio. O cara tinha o pé pesado e furava todos os sinais que podia, mas não chegamos na portaria do Parque da Tujuca antes das nove e dali até plataforma de decolagem das asas delta tem muito chão para percorrer com as mochilas naquele calor infernal.
Depois de ver tanta polícia e fuzil pelo caminho nossa primeira pergunta focou a segurança do acesso à base da via e ficamos tranquilos ao saber que nos últimos meses só havia o relato de um ataque de cachorro a escaladores na trilha. O pulguento armado com dentes afiados era um risco aceitável e deitamos o cabelo trilha abaixo. Nem todos, os carecas só andaram mesmo.
A avenida larga e pisada desce suave pela encosta a sombra de um bosque alto e extremamente seco com o chão coberto por folhas mortas. Não demora e cruzamos um primeiro aguado muito suspeito, de cara avisto um pedaço de vaso sanitário descansando sobre as pedras. O segundo aguado me parece seguro e tem até uma bica improvisada com um pedaço de cano, mas acaba a moleza e o terreno começa a subir com a temperatura já avançando acima dos 40 graus centígrados a sombra e o radiador esquenta pra valer.
No selado que separa a Pedra da Gávea fizemos uma pausa longa para refrigerar depois de 60 minutos de caminhada e o bosque continua a direita até encostar na Pedra Bonita. Mais alguns “lancezinhos de trepa pedra e trepa mato”, ultrapassamos a proteção das árvores e o sol nos atinge em cheio na pinha. O que já era ruim ultrapassa a linha do suportável e o que estava no estômago começa a azedar. Pouco antes da base da via virei pro Natan e mandei guardar a corneta.
– Tô fora Piá, nem adianta cornetear. A temperatura está além do que posso suportar e não quero atrapalhar a cordada me arrastando para cima. Vão em frente e boa sorte que vou esperar vocês na pista de decolagem tomando água de coco na sombra.
Para mim game over na Lionel Terray e desci até o selado puxar um ronco entre a folia da macacada e o corridão dos lagartos. No mínimo estranho batizar uma via quente como o inferno com o nome de um homem do gelo.
Aqui Maurice Herzog também perderia os pés e mãos, só que fritos em protetor solar e não congelados. Retornei matando tempo e sentei na amurada do platô para ver o movimento na rampa de decolagem, mas não havia movimento algum, só uma fila de 20 asas esperando a biruta se mexer. Soltando uma pluma de ganso a um metro do chão pousaria meia hora depois na coordenada exata em que foi largada, nada se movia e passei a prestar atenção na conversa dos pilotos com o pessoal de apoio.
Desconfio que me tomaram por estrangeiro a julgar pelas aparências e nem imaginaram que conseguia entender perfeitamente o dialeto local. Os caras são displicentes em suas responsabilidades e moralmente uns escrotos para dizer pouco. O termômetro marcava 42ºC a sombra sem a menor esperança de brisa e minhas roupas ensopadas de suor pingavam sem parar.
Morceguei por ali umas duas infinitas horas até que começaram a aparecer alguns urubus no céu e a coisa ficou agitada com todo mundo despencando da plataforma até praticamente zerar a conta e ouvi um piloto explicar para o turista que o vento fazia um rotor sobre o segundo estacionamento. Lembrei das conversas interessantíssimas de meus amigos urubus e desci mais que ligeiro à cata deste rotor.
Havia uma brisa morna que a espaços de tempo varria o estacionamento e uma brisa morna era melhor que brisa nenhuma lá em cima, então usei a mochila como travesseiro e deitei ocupando metade do único banco fincado no local. Dormi pesadamente sobre este colchão extra ortopédico pensando nos “Piás” fritando no paredão.
Os manés se f*deram bonito!
Na base se dividiram em duas cordadas com Alisson, Juliano e Bolívia na primeira seguidos pelo Willian com o Natan na segunda e as 11h00 começaram a tocar o bonde para cima. O Alissonlidera a primeira enfiada num diedro com boas colocações para peças móveis em paralelo com velhas proteções fixas que preservam toda a originalidade histórica da via. Alguns lances mais delicados foram reforçados com peças grandes e médias até a parada. Pouco demorou para a segunda cordada se juntar na reunião.
Novamente o Alisson segue como boi de piranha na transversal de mato a esquerda até o grampo no final da via Rebuffat, sobe e se perde no trajeto onde ancorou-se num grampo fora da linha rapelando para retornar ao platô.
O Juliano guiando em paralelo, com o croqui em mãos, facilmente encontrou a passada e novamente se reagruparam na P2. O crux os esperava na terceira enfiada liderada pelo Julianonum diedro onde instalou uma peça nº 4 para melhorar a proteção fixa e em oposição seguiu para as aderências com uma belíssima passada.
A frente os lances em artificial; 7a, 7b e 7c em sequência. Tentar livrar os lances foi impensável naquele calor que ameaçava derreter até as sapatilhas e com o cordelete do Baudrier chegou na parada.
As 13h00 estacionados na P3 enfrentavam uma sensação térmica muito superior aos 50ºC com sol direto na pinha por um lado e na cara refletido pela pedra, castigando a todos, mas fritando aquele que ficava parado dando segue.
A água dentro das mochilas poderia tranquilamente escaldar um Matte na parada. O Bolívia já apresentava sinais visíveis de exaustão ao cruzar os lances de A1 com a ajuda do Jumar e chegou bastante abatido na P3 rapidamente transferida para a P4 na sombra do platô. O Natan e o Willian que escalavam rápido logo cruzaram o mato e se juntaram na reunião.
O croqui documentava uma quinta parada antes da escalaminhada até o cume e o Alisson seguiu guiando pelo diedro em oposição, sem usar nenhuma peça para melhorar a proteção até encontrar uma parada dupla perdida no meio da enfiada. Desfeito o engano continuou em frente até muito próximo do cume alcançado depois de um curto lance de trepa-pedra seguido de caminhada leve.
No meio da corda seguiu o Bolívia com claros sintomas de insolação até alcançar o Alisson escondido debaixo da parca sombra oferecida por um minguado arbusto onde o Juliano compartilhou um litro de Gatorate quase congelado que carregava numa embalagem térmica para backup em caso de emergência naquela frigideira.
Depois de muitas fotos das belíssimas paisagens descortinadas do cume e do bem-vindo descanso iniciaram a descida pela trilha mais suave onde o calor continuava a cobrar seu preço em dores de cabeça, náuseas, tonturas e muita fraqueza, nítidos sintomas de insolação.
Que aprendam a lição para nunca mais escalar debaixo de temperaturas escaldantes e quando inevitável que a água siga no camelbak sempre à disposição para uma hidratação constante.
Horas depois despertei no estacionamento com aquela sensação de estar sendo observado e pulei pasmo ao constatar que havia uma moça muito bonita sentada a minha cabeceira no banco.
– Excuse me! – Falou com voz doce.
Na minha idade toda mulher é cara ou coroa e pra coroa estava longe. Poderia ser gringa ou pensava que o gringo era eu. Fiquei desconfiado e disfarçadamente tratei de fuçar na mochila e nos bolsos para me certificar de que nada havia desaparecido misteriosamente. Na terra dos Tamoios c* de bêbado não tem dono e tratei de picar a mula morro acima para tentar encontrar os parças chegando no cume.
Naquela hora o sol já tinha aliviado para míseros 36ºC a sombra e a trilha que começava bem junto ao banco de concreto era Marumbi puro, direta para o céu escalando degraus de raízes precariamente fixadas numa fina camada de terra ressecada e poeirenta. Sem meio metro de terreno plano, escala o morro em meia hora descontado todas as paradas para enxugar a testa e limpar o suor nos olhos porque o restante do corpo nem me importava mais que babasse até a última gota.
No amplo cume o visual é estupendo com a praia de São Conrado abaixo e a Pedra da Gávea em frente, ambos muito próximos e saí perguntando aos viventes por cinco doidos despontando dos paredões. Ninguém sabe, ninguém viu então que vão para a …, espera tem mais um casal dando um malho escondidos do sol ainda forte numa fresta de pedra com vista para a Gávea.
Disseram que viram cinco moços fortes saindo do paredão uns quarenta minutos antes e partindo para a trilha não mais de meia hora atrás. Se eram cinco “moços fortes” certamente falavam de outras pessoas porque os doidos que procurava não eram moços e deveriam estar destroçados a procura de uma cova rasa para pular dentro à espera do juízo final.
Dei um rolê matando tempo antes de seguir para a trilha principal que desce a montanha suavemente até o primeiro estacionamento. Tão suave e larga que enoja, daquelas que o sujeito anda quinze minutos vendo a perna do zig-zag apenas dois metros abaixo e já no final encontrei o Juliano subindo para procurar o Bolívia e o Willian que haviam ficado para trás, mas como garanti ter varrido o cume e percorrido as duas trilhas sem encontrar ninguém, desceu a estrada no encalço dos perdidos.
Meia hora depois um casal motorizado nos avisou que todos estavam nos esperando na portaria do parque. Encontramos o Bolívia desfalecido dentro da sarjeta enquanto o Willian ministrava a extrema-unção.
Noite abafada com o corpo suando as bicas mesmo depois de um banho frio e o estomago grudado nas costas. Ameacei sair de havaianas e fui logo repreendido.
– Calce as botas véio loko. Não tem amor aos pés? Vai pegar frieiras até no calcanhar se ainda sobrar algum dedinho pra coçar!
O hotel ficava na Cinelândia e dois passos para fora da porta adentramos em Sodoma. Prosseguimos sem medo por entre vielas estreitas e abarrotadas com camelôs e pedintes, montanhas de lixo, cheiro forte de urina e esgoto, desviando as mesas dos bares entupidos de funcionários públicos aposentados e abrindo passagem por entre sodomitas histéricos. Os velhos edifícios pixados de cabo a rabo, muitos abandonados e depredados e as praças cercadas deram lugar ao largo do Circo Voador cruzado pelos arcos de pedra caiada do bondinho que voou numa curva e foi desativado para evitar manutenção.
Babilônia superlotada onde toda a fauna humana coexiste em desordem absoluta no meio das barracas com comida suspeita ocupando o calçamento, uma grudada a outra com os pedestres se misturando aos automóveis.
A Vigilância Sanitária está proibida de se aproximar e a população de pombos urbanos desapareceu num raio de dois quilômetros. Entramos num bar e encomendamos um PF reforçado para cada faminto. No bar a ordem e a higiene não são melhores que lá fora, mas a cerveja é gelada. O que não mata, engorda e foi a fome que morreu afogada em feijão, arroz, batata frita e bife.
Nas escadarias multicoloridas rola tudo o que se possa imaginar mesmo vigiados por fuzil AR-15 e pistolas dos “home de farda”. É o caos absoluto e tem aprovação total dos orgulhosos Tupinambás que fizeram da praça de guerra uma atração turística para gringo levar de recordação. Lugar maravilhoso para se visitar e depois voltar correndo para casa valorizando tudo, a começar pelo capacho com a inscrição “Lar, doce lar”. Mas não retarde aquela viagem a terra dos ancestrais para tomar consciência que ainda falta muito a fazer e não se acomodar pensando que tudo está perfeito.
Amanhece novo dia, quente como o inferno de Dante e logo após o café já nos despedimos do Alisson e do Bolívia que retornam a pátria montados numa Toro. O Natan em Gomorra é alemão, mas não perde o fogo no rabo e novamente estamos embarcados com destino a Praia Vermelha.
Molhar os pés na água fresca do mar?
Nada disto, melhor derreter na Pista Tenente Coutinho. O Juliano e o Willian seguem para a base da Italianos enquanto eu e o Natan vamos descansar subindo o costão do Pão de Açúcar debaixo de sol. Vi onde o Lucas tomou uma vaca que só acabou numa maca no corredor do Miguel Coutoe para variar um pouquinho encalhamos num engarrafamento de paulistas no “crux”. Um casal que também esperava descongestionar a passagem escondidos do sol debaixo da parca sombra de um arbusto nos comunicou satisfeitos que o dia seria agradável com previsão de temperatura máxima pouco superior aos 39ºC.
Agradável para quem, cara pálida?
Pedimos licença e furamos a fila prometendo não atrapalhar. Pouco acima encontramos um enorme balão atravessado sobre a trilha cercada por vegetação ressequida só esperando uma pequena faísca para incendiar toda a encosta.
Havia percorrido esta mesma trilha uns 16 anos atrás e lembrava que o cume ficava logo depois de passar o escalão. Memória de velho é uma m*rda e seguimos nos arrastando pela superfície da frigideira por muito tempo ainda antes de chegar numa sombra decente.
Falar da vista no cume do Pão de Açúcar é totalmente desnecessário e descansamos um bom tempo antes de embarcar no teleférico para descer o morro. Pendurados no vazio ainda vimos uma única dupla fritando ao sol para galgar os últimos metros do cabo de aço na CEPI e na trilha encontramos o Juliano e o Willian nos esperando após abandonar a Italianos.
O Juliano já a conhecia de uma escalada anterior, mas o Willian estava bem curioso para encarar uma das vias clássicas do Rio de Janeiro. Extremamente desgastados pela intensa atividade no dia anterior já na trilha sentiram o cansaço pegar forte naquele calor todo. Na base da via pegaram dicas sobre outras vias com uma dupla que se encordava enquanto observavam um casal evoluindo na vizinha Cavalo Louco.
Na ponta da corda, o Juliano seguia de perto as recentes marcas de magnésio que demonstravam as melhores agarras com o Willian sendo devorado vivo pelos mosquitos enquanto dava segue.
As 10h30, em reunião na P1 decidiram rapelar os 35 metros até a base numa só tacada, vencidos pelo calor e pela necessidade de fazer o checkout no hotel antes das 14h00. A temperatura e o cansaço não permitiriam velocidade suficiente para nos encontrar no cume em tempo de cumprir nossa agenda para o dia.
Treze horas de viagem, engarrafamento na entrada de São Paulo, radar e pedágio aos montes, e chuva na entrada do Paraná que nos acompanhou até praticamente o portão de casa. Lar, doce lar e a temperatura de 25 graus centígrados que nos parecia insuportável uma semana antes agora é festejada como se fosse uma brisa fresca vinda dos picos nevados dos Alpes suíços.
Tudo como antes nas terras do marques, mas com baterias recarregadas para mais um bom tempo na labuta.