Agudos

Agudos

3 de abril de 2020 0 Por Natan

Tempos difíceis, nunca pensei que montanhista seria caçado como criminoso, nunca pensei que haveria um racha entre montanhistas, os que querem ir para a montanha e os que dizem que ir para montanha é coisa de genocida.

A caminhada foi realizada em abril, mas só agora, final de agosto que sentei para escrever esse relato.

Os dias são estressantes, toda semana aparece alguma coisa nova para atrapalhar. É um decreto municipal ou um estadual impedindo vc de fazer alguma coisa. Male mau vc consegue ter condições de trabalhar ou sair na rua. A internet é uma caça às bruxas, qualquer um que tenha uma opinião diferente da galera #fique em casa, é massacrado, ofendido ou julgado.

Trabalho diretamente com o comércio, desde o pequeno até o grande, vejo todos os dias as coisas indo para o buraco, as pessoas preocupadas, estressadas ou paranoicas. Eu que a muitos anos mantenho uma rotina de todo final de semana estar na montanha caminhando ou escalando, é muito frustrante ou quase desesperador ficar em casa. Para alguns pode parecer exagero, mas só eu sei o quanto consigo manter minha saúde mental estando na montanha, principalmente em épocas tão difíceis e complicadas quanto essa que estamos vivendo.

Moro no mesmo terreno que meus pais que já são idosos, cuido deles e atendo todas as suas necessidades, indo ao mercado, padaria, farmácia … enfim, dando todo o suporte para os dois que são do grupo de risco.

Nas primeiras semanas da pandemia pesquisei muito sobre o assunto, li muita coisa, assisti muitos vídeos e escutei opiniões de todos os lados, tudo para poder ter uma opinião própria sobre o assunto e saber o que eu deveria fazer, como deveria ser a minha postura diante a tudo que estava acontecendo.

Não quero me justificar, não preciso disso. Só vou deixar aqui registrado minha postura sobre tudo isso que está acontecendo. Se estou certo ou não, só o tempo vai dizer.

Acompanhando o caos e a histeria que tomou conta de tudo e de todos, me posicionei de uma forma e mantive ela desde o início. Sairia dessa pandemia mais forte do que nunca. Mais forte fisicamente, com minha saúde mental intacta, com meu trabalho saudável e meus projetos de montanha rodando a todo vapor. Se as academias estavam fechadas, eu treinava na rua. Se não podia treinar na rua, treinava no quintal de casa. Se não podia trabalhar, trabalhava e produzia de portas fechadas. Não parei de treinar, de estudar, de trabalhar por um dia sequer, e na montanha não seria diferente. Tendo todos os cuidados possíveis e dando suporte e apoio para os meus pais. Essa foi a melhor forma que achei de passar por tudo isso que está acontecendo. Como falei, se é uma postura certa ou não, só o tempo vai dizer.

Devido ao feriado e as circunstancias, eu e a Luciana tínhamos 4 dias para fazer alguma coisa na montanha. Tudo estava fechado, tinha barreiras sanitárias ou bloqueios de acesso por tudo que é canto, mas tinha um lugar que teoricamente daria para acessar as montanhas, “Marco 22” na Estrada da Graciosa. Essa entrada, ou na maioria das vezes saída e final de grandes travessias na Serra do Ibitiraquiri é um lugar que não tem nada em volta, é apenas um ponto isolado no início da descida da Graciosa.

Sábado à tarde o irmão da Luciana, nós levou por estradas secundarias até a Estrada da Graciosa. Estrada vazia, por todo trajeto cruzamos com um ou outro carro. No Marco 22 onde descemos foi muito rápido, apenas saímos do carro, pegamos as cargueiras no porta malas e rapidamente entramos na trilha enquanto Lucas sai com o carro como se nada tivesse acontecido. Somente dentro da mata fomos nos arrumar melhor, colocar as polainas e se preparar para caminhada. Enquanto terminava de me arrumar achei engraçado a situação, nunca pensei que precisaria me esconder, planejar a melhor forma para não ser pego, descer de um carro em segundos e me esconder para poder estar na montanha rsrs.

Eram 4 horas da tarde quando demos início a tão esperada caminhada, eu queria pelo menos chegar até a Cachoeira do Mãe Catira para passar a noite, até lá teríamos ainda umas 3 horas de trilha para seguir, isso se não errasse nada.

Caminhamos até a base da cachoeira sem problema em um ritmo firme e constante. Achamos um bom lugar para montar as redes e instalar nossa cozinha. Mesmo com um fogareiro sentada no chão entre o barro, conseguimos fazer uma janta muito boa.

O dia não seria puxado, deu para acordar tranquilo, tomar café de frente a cachoeira,  desmontar acampamento e começar a caminhar.

Nosso próximo destino era a Garganta entre o Cotoxós e o Tangará. Seguindo a trilha que começa no Dique Diábase e sobe beirando, ou cruzando algumas vezes o Rio Mãe Catira. Temperatura tranquila, céu azul e provável que somente a gente estivesse naquela região.

Depois de atravessar uma das vezes o rio Mãe Catira a trilha estava bloqueada por uma grande árvore que tinha caído, desviamos esse trecho varando mato e logo encontramos o rastro novamente. Logo que voltamos a trilha correta escuto a Luciana dar um grito atrás de mim, “Acho que alguma coisa me picou!”. Ela tirou correndo a mochila das costas e abaixou a calça reclamando com uma voz de dor. “Olha aqui pra mim Natan, ta doendo e ardendo de mais a minha bunda”. No primeiro momento achei meio exagero, mas quando ela se virou de costa e vi a bunda dela fiquei um pouco preocupado. Na parte superior da nadega esquerda tinha um ponto com sangue, envolta desse ponto tinha uma enorme mancha vermelha que parecia uma queimadura na pele, coloquei a mão e senti que toda aquela área avermelhada estava quente.

Olhei para o chão a procura do bicho que tinha feito aquilo, voltei alguns metros na trilha de cabeça baixa, somente quando olhei para frente percebi que eu estava rodeado por várias vespas pretas enormes. Gritei pra ela, “corre que estamos rodeados por vespas”. Logo que terminei de falar tomei uma picada no joelho. Realmente a Luciana tinha razão de estar reclamando de tanta dor. Pegamos as cargueiras do chão e saímos dali o mais rápido possível. Alguns minutos a frente já longe do perigo das vespas paramos em outra travessia do rio para avaliar como estava as picadas.

Meu joelho latejava e estava febril, mas o que mais me preocupava era a Luciana. Ela tem a pele branca, agora parecia que tinha passado o dia tomando banho de sol de tão vermelha que estava. “Eu estou formigando Natan, meus pés estão formigando muito, minhas mãos também”, enquanto ela repetia isso foi tirando toda a roupa e entrou com o corpo todo dentro da água. Ficamos um tempo ali no rio até ela melhorar, aos poucos a pele dela foi voltando ao normal e os ânimos também.

Retornamos a caminhada, ainda tinha quase duas horas de trilha até chegar na Garganta para montar nosso acampamento. Esse último trecho caminhamos um pouco mais em silêncio. Eu ainda sentia meu joelho latejar bastante, e pelas caras da Luciana, ela também não estava no seu 100%.

Levamos 4 horas para completar o trajeto Cachoeira – Garganta. Não era uma boa opção ficar bem no meio da garganta entre as duas montanhas, o vento frio espantou nossa ideia de dormir ali, então subimos um pouco sentido Tangará até achar um lugar um pouco mais tranquilo para montar nossas redes.

Depois de rodar um pouco achamos um bom lugar para ficar. Agora era hora de fazer a janta e ver como ficou a picada das vespas malditas.

Pensamos que acordaríamos com um dia de céu azul, mas infelizmente não foi bem assim. A ideia era ir até o Agudo da Cotia passando por todos os Agudos e voltar pelo Rio Forquilha até a Garganta novamente, é claro que começamos meio tarde essa caminhada que não é logo ali.

As 11:40 da manhã começamos a trilha para o Tangarim, o início é pela Garganta na diagonal a direita, a trilha não estava tão batida, mas deu para ver bem o rastro, em 50 minutos chegamos no cume do Tangarim, nosso primeiro cume. Mais 1 hora chegamos ao Agudo Marmosa, mais um lanchinho, algumas fotos e seguimos para nosso circuito. Agudo Cuica foi nosso penúltimo cume, ainda com tempo bem ruim, fechado sem visual nenhum. Depois de subir por um campo chegamos na trilha principal que da acesso para o Agudo da Cotia, já era tarde, o tempo estava praticamente fechado e a preguiça bateu, pensei duas vezes em atacar o cume do Agudo da Cotia, mas a insistência e animo da Luciana me convenceram a ir até o cume.

Passamos 15 minutos no cume, tempo de comer mais alguma coisa e assinar o caderno antes de voltar a caminhar, ali estávamos na metade do caminho e retornaríamos para Garganta pelo Rio Forquilha. Sabe lá quanto tempo fazia que eu não passava por aquelas bandas.

Depois de cruzar o Colina Verde começa uma sequência de vales, um valezinho menor, depois desemboca em outro maior e por fim no vale do Rio Forquilha. Nesse trecho já precisamos usar as lanternas, a noite estava fria e sem nenhuma luz da lua para ajudar.

Achar a saída do rio para a Garganta foi bem tranquilo, tinha uma fita enorme identificado a entrada da trilha. O problema foi um pouco mais acima, o bambuzal tomou conta de tudo e varar aquela merda a noite e cansado não foi muito fácil. Não lembro quanto tempo levamos para chegar até o nosso acampamento, mas não deve ter ultrapassado 1:30.

Último dia de caminhada, agora era desmontar tudo e tocar até o Marco 22. Calculamos 6 horas para concluir esse trecho. Combinamos por telefone com o Lucas de estar na Graciosa as 17 horas. A caminhada foi tranquila, apenas um episódio com uma cobra que encontramos pelo caminho. Para desviar das vespas malditas, contornamos esse trecho varando mato, nessa de varar mato acabamos dando de cara com uma cobra, grande e mau educada, nem fizemos nada para ela e a lazarenta acabou querendo dar um bote nos montanhistas que só estava ali de passagem, nem estava mexendo com ela, mas tudo bem, deveria estar em um mal dia.

Chegamos antes do combinado na Graciosa, levamos 5 horas para percorrer todo o trajeto, é claro que para finalizar nossa trip ainda passamos mais um perrenguinho, uma chuva gelada caiu enquanto esperávamos sentados o Lucas aparecer, contando os minutos para poder colocar uma roupa seca e quente.

Apesar dos perrengues a caminhada foi um tesão, fazia muitos anos que eu não andava por aquelas bandas. Demos muita risada e aproveitamos ao máximo aqueles dias isolados na montanha, mesmo com o susto que tivemos com as vespas malditas.

Cachoeira Mãe Catira

Cachoeira Mãe Catira

Acampamento de rede

Acampamento de rede

Dique Diábase

Dique Diábase

Luciana e Natan

Luciana e Natan

Bora caminhar

Bora caminhar

Caixa de registro da Garganta

Caixa de registro da Garganta

Cume do Tangarim

Cume do Tangarim

A frente o cume do Tangará

A frente o cume do Tangará

Luciana

Luciana

A esquerda o Tangará e a direita o Arapongas. Foto tirada do Marmosa

A esquerda o Tangará e a direita o Arapongas.
Foto tirada do Marmosa

Caderno do Agudo Cuica

Caderno do Agudo Cuica

Último vale antes de subir o Agudo da Cotia.

Último vale antes de subir o Agudo da Cotia.

Cume do Agudo da Cotia

Cume do Agudo da Cotia

Seguindo rumo ao Rio Forquilha

Seguindo rumo ao Rio Forquilha

Final da tarde, hora de sacar as lanternas.

Final da tarde, hora de sacar as lanternas.

Retorno pra casa. Em cima da Cachoeira Mãe Catira.

Retorno pra casa. Em cima da Cachoeira Mãe Catira.

Final, Marco 22

Final, Marco 22